terça-feira, 24 de março de 2015

A Ilha do Tesouro na Terra do Fogo (Parte 1)

Na época das grandes navegações eram comuns histórias de grandes tesouros, com barcos cheios de piratas, comandantes valentes, e jovens grumetes. Como não lembrar de personagens clássicos como o jovem marinheiro Jim Hawkings, o capitão Dr. Livesey ou o pirata “Long” John Silver, à bordo do navio Hispaniola? E quem sabe o autor Robert Louis Stevenson não tenha se inspirado um pouco mais na vida real do que poderíamos esperar, ao escrever “A Ilha do Tesouro”, que viria a ser publicado em 1883. Talvez o autor escocês possa ter ouvido falar de histórias que aconteceram não no Caribe, mas na América do Sul.

Seis décadas antes o barco era outro, o HMS Beagle, que vinha fazer uma missão cartográfica. Os ingleses estavam sedentos por poder, o que não é nenhuma novidade, mas nesta época estavam mais do que nunca! Eles aproveitaram a recente independência dos países do Cone Sul para se infiltrar comercialmente (comprando quase tudo o que era produzido), e para conjurar guerras, já que além de terem as oligarquias em suas mãos, praticamente não existiam exércitos sul-americanos sem mercenários ingleses, irlandeses ou europeus. A Guerra da Cisplatina acabava e de terminar, e o Rei Guilherme IV já estava de olhos nas Ilhas Malvinas, no Rio da Prata e até no Hawaii! Justificando assim a Estação Sul-Americana da Marinha Real, em Valparaíso no Chile.

O velho veterano da Batalha de Trafalgar, capitão Pringle Stokes, havia zarpado de Plymouth do dia 22 de Maio de 1826, e no decorrer da viagem entrou em uma tremenda calmaria na Terra do Fogo.  Este clima inóspito fez com que ele caísse em depressão, e quando chegou ao Porto da Fome, no Estreito de Magalhães, trancou-se em seu quarto por 14 dias e depois suicidou-se com um tiro na cabeça. Dali a nau voltou para reparos no Rio de Janeiro, e para receber novas ordens do almirante Robert Otway da Estação Sul-Americana. Numa decisão controversa, ao invés de passar o navio para o próximo em linha de comando, o primeiro-tenente William Skyring, o almirante optou pelo jovem ajudante-de-ordens Robert FitzRoy, então com 23 anos, como novo capitão do Beagle.

Ao dar continuidade à missão histórica, o brigue retorna por aquela mesma região, e perto da Ilha Desolação alguns marinheiros pegam o bote salva-vidas do navio ancorado e passam a noite numa ilhota perto dali.  Ao acordar descobrem que alguns indígenas haviam roubado o bote. Isso deixa FitzRoy enfurecido e faz com que ele passe dois meses obsessivamente procurando pelo bote, até que eventualmente de seus sucessivos fracassos viria uma idéia mirabolante: 
"Convenci-me de que, enquanto formos ignorantes da língua fueguina, e os nativos forem igualmente ignorantes da nossa, não iremos nunca saber muito sobre eles, ou o interior do seu país; nem haverá a menor possibilidade de virem a ser elevados um degrau acima da baixa estima que nós temos por eles". (Diário de bordo de FitzRoy)
Então como retribuição pelo roubo do bote baleeiro ele levou 4 nativos para Londres. Foram batizados de Jemmy Button (O'run-Del'ico), Fuegia Basket (Yok’cushly), York Minster (El’leparu) e Boat Memory (cujo nome original se perdeu na história). Pode-se perceber pela ironia na escolha dos nomes, que desde do início a atitude geral era de zombaria aos aborigenes. Muitos falam sobre as "boas intenções" de Robert, mas não é isso que vemos a seguir.  De Wulaia, no extremo sul do Chile, onde o oceano Pacífico encontra o Atlântico, o Beagle levava consigo Jemmy Yagán, e outros 3 indígenas da etnia kawésqar para aprenderem inglês, converterem-se ao Cristianismo, e servirem de intérpretes e missionários para o Rei. 


A Tierra del Fuego foi dada esse nome porque os índios daquela
região tinham o hábito de sempre levar o fogo dentro de suas canoas.

Além de tradutores e párocos, os ingleses utilizavam diplomatas em sua infiltração e conquista de territórios. Uma dessas maneiras era através do "estado tampão". Um exemplo desse tipo de estado é o Uruguai, que declarou independência do Império do Brasil com o forte apoio das Províncias Unidas do Rio da Prata.  A tática era de "dividir e conquistar", e reinar sob uma "pax britânica". Durante o conflito na Cisplatina, o Brasil conseguiu reter as metrópoles, enquanto o governo de Buenos Aires tomou conta de todo o interior deste país.  Supostamente os nossos vizinhos levaram a melhor na guerra, mas não tiveram o poderio militar para tomar proveito desta vitória. A Marinha do Brasil havia bloqueado o comércio do Rio da Prata durante todo este tempo, e a Inglaterra estava pressionando pelo fim da guerra. Hoje em dia temos correspondências do diplomata Lord Ponsonby que indicam que todo o processo de independência do Uruguay, desde o Êxodo Oriental até 1827 foi influenciado pela Coroa Britânica:
"É Lavalleja à quem devemos a paz, em grande parte, pelo menos. Eu acho que nós jamais haveríamos alcançado-a por meios corretos sem sua cooperação." (Carta de Ponsonby a Gordon, Buenos Aires, 9 de março de 1828)
Os ingleses temiam que se o Brasil tivesse todo o extenso litoral do Oceano Atlântico, do Amazonas até o Rio da Prata, com poucos navios e alguns portos na África, poderia tomar o comércio da região para si, e mesmo uma marinha como a britânica teria dificuldades para lutar uma guerra naval tão distante de suprimentos e recursos. Durante a Guerra da Cisplatina o Império Brasileiro havia atacado a cidade de Carmen de Patagones, e ficou evidente que o litoral sul da Argentina estava vulnerável a ataques marítimos. Portanto as Ilhas Malvinas eram uma peça-chave na proteção desse território, e assim Luis Vernet, um comerciante Húngaro naturalizado, inicialmente montou uma empresa em Puerto Soledad e convenceu o governo Argentino a desenvolver o comércio e popular a ilha.  Neste primeiro momento ele levou consigo alguns gaúchos e indígenas dos pampas, entre eles estava o mestiço charrúa Antonio Rivero. Desde 1825 a Inglaterra havia reconhecido a independência da Argentina, e não fez nenhuma revindicação pelas ilhas até o ano de 1829, quando Luis Maria Vernet foi nomeado o primeiro governador das "Falkland Islands".  Nesta ocasião o próprio Primeiro Ministro Duke de Wellington declarou: "Eu já percorri todos papéis à respeito das Ilhas Malvinas. Não é claro para mim que já possuímos alguma vez a soberania sobre essas ilhas."

Um ano depois os fueguinos já estavam causando um certo rebuliço em Londres. A sociedade local considerou aquilo como um experimento, já que os índios foram colocados no First Church of England Primary School, em Walthamstow, um colégio anglicano. Lá estavam sendo ensinados modos “civilizados”, ao ponto de que é dito que Jemmy não conseguia passar por um espelho sem ficar admirando suas roupas. Ele foi apelidado de Button (Botão), porque foi trocado com sua família por um botão de madrepérola. Mesmo todos os índios havendo sido vacinados antes de aportar na Europa, Boat Memory, o quarto kawésqar, morreu de varíola ao chegar em Plymouth. Sobre Fuegia Basket, Charles Darwin escreveu: "é uma boa, modesta, e reservada jovem, com uma expressão bastante agradável, mas, por vezes, mal-humorada, é muito rápida em aprender qualquer coisa, especialmente línguas. Isso ela demonstrou em pegar um pouco de espanhol e português, quando foi deixada em terra apenas por um curto período de tempo no Rio de Janeiro e Montevidéu, e no seu conhecimento de inglês." Ele também mostrou admiração por York e Jemmy:
"York Minster era um homem adulto, baixo e forte, seu temperamento era reservado, taciturno, melancólico, e quando animado ficava violentamente empolgado; sua amizade era muito forte em relação a alguns colegas à bordo; e possuía bom intelecto. Jemmy Button era um favorito de todos, mas da mesma forma era empolgado; a expressão do rosto imediatamente mostrava sua boa índole. Ele era alegre e muitas vezes ria, e era incrivelmente gentil com qualquer um sofrendo dores: quando o mar estava revolto, eu muitas vezes passava mal, e ele costumava vir a mim e dizer em voz melancólica, 'Pobre, pobre companheiro!' <...> Ele era um verdadeiro patriota; e gostava de elogiar sua própria tribo e seu país, em que ele realmente disse que havia 'muitas árvores', e difamava todas as outras tribos: ele corajosamente declarou que não havia Diabo na sua terra. Jemmy era baixo, parrudo e gordo, mas vaidoso com sua aparência pessoal; ele costumava sempre usar luvas, seu cabelo estava bem cortado, e ficava chateado se seus sapatos bem lustrados ficassem sujos."
De cima para baixo: Yok’cushly Kawésqar, O'run-Del'ico Yagán
e El’leparu Kawésqar. 

Quando chegou na Inglaterra em Agosto de 1830, o jovem inexperiente Robert FitzRoy não tinha a menor idéia de que haviam passado a nova Lei de Palmerston, uma espécie de Lei Áurea inglesa, um ato de abolição da escravatura.  Devido a essa gafe, foi chamado a uma reunião com o ministro do interior, o Visconde de Melbourne, para dar maiores explicações sobre seus atos. Após ser acusado de escravista, FitzRoy confessou ter capturado os indígenas contra suas vontades, como reféns.  Isto não ajudou nem um pouco a já deteriorada opinião pública, mas mesmo assim a permissão foi concedida para os fueguinos ficarem.  O plano de estudos dos parentes originários era aprender inglês e o básico do Cristianismo, depois estudar jardinagem, agricultura e ferramentas mecânicas leves.  Após dominar um pouco a língua inglesa tiveram uma audiência com o Rei e a Rainha Adelaide, e ganharam uma quantidade significativa de presentes da aristocracia local. Jemmy e Fuegia foram muito bem nos estudos, mas York não evoluiu muito por causa da sua idade avançada, 28 anos, e não se adaptou muito bem numa turma infanto-juvenil. Para piorar a situação, com o tempo York, começou a “namorar” a Fuegia, de 12 anos, o que deixou o capitão Fitzroy desesperado. 

FitzRoy não queria voltar tão cedo para o mar, ele temia as fortes tempestades, a malnutrição, e principalmente de ter o mesmo fim que seu predecessor. Por isso buscou algum companheiro de bordo com quem pudesse conversar e manter a sanidade. Quando Robert McCormick, o naturalista oficial do Beagle, decidiu iniciar a sua jornada que traria ao mundo a Teoria da Evolução, essa era a chance de Jemmy, Fuegia e York sairem de fininho, e Robert sair dos holofotes. Foi assim que Charles Darwin entrou em cena, com apenas 21 anos na época, foi financiado pelo pai para poder ter uma vaga na expedição como “coletor de materiais” (uma espécie de naturalista assistente). Darwin era um graduando de Bacharel de Artes na Christ's College, em Cambridge, no intuito de se especializar em clérigo Anglicano, e ainda acreditava no mito da Criação naquela época. 

Enquanto o navio do Rei zarpava pela segunda vez, o general Fructuoso Rivera havia se tornado o primeiro presidente do Uruguai. Até então não haviam ocorrido conflitos naquela região sem que índios tivessem envolvidos em quaisquer lados das batalhas.  Os índios charrúas já eram conhecidos por serem muito combativos e resilientes, inclusive por terem saqueado Montevideo no momento de sua fundação, e mostrando aos europeus a arma que viria a ser característica da cultura dos pampas, a boleadeira (conhecida como cupiá). A maioria dos povos originários até lutaram lado a lado com as tropas da Banda Oriental, ajudando os objetivos emancipadores. Eram nômades, e diz-se que lutar diretamente contra os charrúas era quase impossível, devido à serem exímios montadores e terem grande capacidade de deslocamento.  Muitas vezes por enxergarem a si próprios como verdadeiros donos da terra, não viam problemas em tomarem dos fazendeiros gado para se alimentar, cavalos, e couro de vaca para se vestirem, e os latifundiários pressionavam muito o governo para domá-los a qualquer preço.  A única maneira de conseguir "amansar" os índios foi através de uma emboscada, conhecida como Massacre de Salsipuedes, em 1831.  Ali o presidente, aproveitando-se da boa relação que estes povos tiveram com os uruguaios durante décadas, convocou todas as lideranças indígenas para uma reunião onde iria ser organizada a defesa do território do país. Por escolha proposital ou não, os soldados que executaram os charrúas, eram parentes Guaranis.  Cerca de 150 a 200 indígenas morreram, os sobreviventes foram aprisionados.  Vaimaca Peru e o pajé Senaqué, Guyunusa e Tacuabé foram levados acorrentados, já o cacique Sepé conseguiu fugir com 25 homens. Todos estes são personagens históricos do Uruguai até hoje. Alguns poucos conseguiram fugir para o sul do Brasil, a maioria caiu na política de redistribuição de escravos charrúas comandada por Rivera. Muitos, até barcos inteiros, foram enviados às Ilhas Malvinas:
"Oficie-se ao Ministério da Guerra para que através das Capitanias dos Portos, se faça entender junto aos capitães dos navios que partem para o exterior, que o governo está disposto a admiti-los um ou mais de dois Charrúas." (Decreto del 10 de Mayo de 1831 de José Ellauri)

A boleadeira dos gaúchos, é uma arma originalmente inventada pelos Charrúas.

 Após 3 buques americanos serem detidos pescando ilegalmente em águas malvinenses, e levados para Buenos Aires para serem julgados, o governo americano exigiu que o presidente Juan Manuel de Rosas se desculpasse formalmente, o que não aconteceu.  A corbeta americana USS Lexington então atacou Porto Soledad em retaliação, destruindo todas as fortificações recentemente construídas por Luis Vernet. No momento do ataque, a colônia de Port Louis ou Puerto Soledad tinha cerca de 124 habitantes, dos quais 30 eram negros, 34 portenhos, 28 rioplatenses e 7 alemães, a que se acrescentou uma guarnição de cerca de 25 homens. As provisões foram saqueadas e muitos habitantes foram levados presos. Os charrúas que ali chegavam não tiveram um destino muito melhor. Seus donos as vezes não se preocupavam nem em vesti-los para aquele clima ameno, então acabavam morrendo de frio. Era comum ver nativos pastando ovelhas por quilômetros e quilômetros, o que os levava à enfermidade, para a indiferença de seus donos que não lhes tinham os mínimos cuidados. Em certa ocasião em que uma senhora desejava devolver sua índia charrúa, por esta não lhe servir para nada, em resposta o Ministro das Relações Exteriores José Ellauri retrucou: "contesto-lhe que, doravante, não assumirei qualquer índio que se queira devolver," acrescentando, "a razão de ser-lhe inútil, não é suficiente para tanto, pois antes de educar-lhes todos mais ou menos o são". 

Quando o Beagle ancorou em Salvador, na Bahia, em Março de 1832, o tema de escravismo também causou polêmica. O jovem Charles Darwin era neto de um famoso anti-escravagista e fundador da Sociedade Lunar, Erasmus Darwin, e parece que FitzRoy ainda não havia conseguido esquecer as acusações pelas quais passou um ano antes.  Charles ficou naturalmente chocado com o tratamento dos escravos no Brasil, e durante o jantar FitzRoy relembrou de um certo fazendeiro que disse a ele que quando perguntou a seus escravos se eles desejavam ser livres, eles o responderam que não. Daí Darwin perguntou a FitzRoy se era possível para os escravos responderem essa pergunta honestamente, já que vinha de seu senhor. Em seguida o capitão teve um ataque de nervos, mandando Darwin sair da mesa e efetivamente expulsou-o da missão; mas logo fizeram as pazes.  Na verdade o capitão tinha um temperamento explosivo, tanto que foi apelidado pela tripulação de "Hot Coffee" (Café Quente).  Chegando no Rio de Janeiro FitzRoy precisou voltar pra Bahia para remapear alguns trechos do mapa em discrepância, enquanto isso Darwin ficou aqui morando 2 meses na Praia de Botafogo com Fuegia Basket e o pintor Augustus Earle

Na segunda missão do navio, o mapeamento da região era apenas o objetivo secundário da expedição.  O Foreign Office havia dado ordens de explorar as Malvinas, mas o motivo principal da viagem era o estabelecimento da Sociedade da Igreja Missioneira, pelo missionário Richard Matthews, de 22 anos de idade, que durante a toda a viagem de volta continuou doutrinando os índios na intenção de permanecer com eles aqui na América do Sul. O reencontro dos 3 fueguinos com suas famílias foi repleto de medo, estranheza, frieza e até rejeição. Dizem os historiadores que a mãe de Jemmy sequer lhe dirigiu a palavra, quando o viu vestido e agindo como um caraíba virou as costas e foi embora.  Chegando em Wulaia descobriu-se que Jemmy havia esquecido sua língua natal, e os marinheiros deram risadas ao vê-lo tentando se comunicar com seu irmão metade em espanhol, metade em inglês. Quando lhe deram notícias da morte de seu pai ele também não se emocionou, porque disse já ter sido avisado disso em um sonho. Lá construíram três cabanas e uma horta, e descobriram que seu irmão era o pajé daquela tribo.  Ele foi batizado de Tommy, e quis ficar com o grupo do evangelizador, junto com outros membros da família.  Quatro dias depois alguns marinheiros foram praticar tiro ao alvo com seus mosquetes, para mostrar ao índios a potência delas, o que fez com que quase todos fugissem. Assim FitzRoy decidiu fazer um teste e partir por alguns dias, e ver como as coisas se desenrolavam. Quando voltou o missionário resolveu desistir da missão:
"Matthews deu um relato tão ruim do comportamento dos Fueginos que o capitão o aconselhou a voltar para o navio. A partir do momento da nossa partida, um sistema regular de pilhagem foi iniciada, em que não só Matthews, mas York & Jemmy também sofreram. Matthews perdeu quase todas as suas coisas; e a vigilância constante era mais um assédio & inteiramente o impediu de fazer qualquer coisa para obter alimento & noite e dia grandes grupos de nativos cercavam sua casa. - (Nota na margem: Eles tentaram cansá-lo, fazendo ruídos incessantes) Um dia, após ter solicitado a um ancião a deixar o local, ele voltou com uma grande pedra na mão: Outro dia, um grupo inteiro avançou com pedras e estacas, e alguns dos mais jovens e o irmão de Jemmy estavam chorando. Matthews pensou que queriam só roubá-lo e ele ofereceu presentes. Mas não posso deixar de pensar que tinham algo a mais reservado para ele. Eles mostraram por sinais de que iriam pelá-lo e arrancar todos os cabelos do rosto e corpo. Acho que voltamos bem à tempo de salvar a sua vida." (Diário de bordo de Charles Darwin)
Um mês antes deste acontecido, em 3 de Janeiro de 1833, o capitão John Onslow tinha usurpado de forma imperialista as Malvinas a menos de 500 km da Argentina e a mais de 12.000 km de Londres.  As defesas argentinas não estavam ainda recuperadas do último ataque americano. Luis Vernet não se encontrava nas ilhas, e portanto os ingleses aproveitaram para declarar aquilo "res nullius", terra de ninguém, como se não houvessem habitantes.  A única forma de defesa que os Argentinos possuíam era a goleta Sarandí de 8 canhões e seus 25 homens, contra o HMS Clio de 18 canhões e o HMS Thyne com 28 canhões, e ainda por cima parte da tropa argentina era de origem britânica. A legislação do Reino Unido contemplava o crime de alta traição para os nativos desse país que se levantassem contra a coroa. A maioria dos homens disseram que estavam dispostos a lutar, mas a resistência era insuficiente.  O comandante José Maria Pinedo nada pode fazer e acabou encarando uma corte marcial da marinha por quebrar o Código Militar e não ter resistido aos britânicos.  Desde então os ingleses sempre declararam em sua defesa que haviam se reinstalado nas ilhas, sendo que nunca habitaram a capital da ilha, apenas ocuparam o Porto Egmond, em uma ilhota ao lado da Malvina Ocidental, entre 1766 a 1774 até serem expulsos pelos Espanhóis. 

Darwin chegou no arquipélago e escreveu que "os atuais habitantes consistem de um inglês, que reside aqui ha alguns anos, e tem agora o mando da bandeira britânica, 20 espanhóis (argentinos) e três mulheres, duas das quais são negras."  Isto é porque grande parte da população fugiu durante os recentes ataques, aquelas que já não tinham fugido durante o ataque norte-americano.  Os únicos que não conseguiram fugir foram os gaúchos e os charrúas, proibidos principalmente por Mathew Brisbane, que era o braço-direito de Vernet, mas passou para os lados do ingleses durante a invasão, e agora era governador interino.  Brisbane havia se rendido com Pinedo, fugindo para Buenos Aires no Sarandí, e agora voltava às ilhas a bordo do Beagle. Em uma reunião com o FitzRoy, Brisbane foi incentivado a continuar o negócio de Vernet "desde que não exista nenhuma tentativa de promover as ambições das Províncias Unidas".  O capitão foi forçado a usar seus poderes de persuasão para incentivar os gaúchos a continuarem trabalhando com o estabelecimento de Vernet, uma empresa que viria a ser vital na continuidade inglesa nas ilhas:
"Durante este mês que permaneci em Berkeley Sound [Bahia da Anunciação], eu tive muitos problemas com as tripulações envolvidas na caça de baleias ou lobos-marinhos, bem como os colonos, que pareciam pensar que, por causa que a bandeira britânica fora re-hasteada nas Malvinas, eles estavam livres para fazer o que quisessem com a propriedade privada do Sr. Vernet, bem como com o gado e cavalos selvagens. Os gaúchos [e charrúas] desejavam abandonar o lugar, e voltar para a [região da] Plata, mas como eles eram os únicos trabalhadores úteis nas ilhas, de fato, as únicas pessoas de qualquer confiança que podiam ser alocados para um fornecimento regular de carne bovina fresca, me interessava tanto o quanto possível induzi-los a permanecer, e com um sucesso parcial, formalmente sete dos doze." (A Viagem do Adventure e o Beagle - Robert FitzRoy)
Poucos dias depois, sem mais instruções para cumprir, Onslow abandonou o arquipélago em direção à costa do Brasil deixando apenas uma guarnição mínima, liderados por um tenente chamado William LoweCrescia o descontentamento entre os peões gaúchos e charrúas. O capataz Jean Simon tentava alargar os trabalhos já pesados, e além disso, os nativos ainda estavam recebendo como salário uma espécie de vale subscritos pelo ex-governador (peso das Ilhas Malvinas), que não foram aceitos pelo novo chefe de armazéns, o irlandês William Dickson. Eles também foram negados o uso de cavalos, e de alimentar-se do gado, forçando-os a caçar pequenos animais silvestres. Os estrangeiros que ficaram no arquipélago queriam um rápido entendimento com o Reino Unido, ao contrastaste do fervor patriótico dos criollos. Discordando dessa nova situação, um grupo de oito charrúas e gaúchos se revoltaram em 26 de agosto de 1833, sob a liderança do entrerriano originário Antonio "El Gaucho" Rivero (apelidado de "Antook" pelos britânicos). Os guerreiros charrúas eram: Luciano Flores, Manuel Godoy, Felipe Salazar, Manuel González e Pascual Latorre


Até hoje na Argentina, o mestiço charrúa "El Gaucho" Rivero
é visto como herói nacional.

Estes rebeldes estavam armados com facões, espadas, pistolas, espingardas e boleadeiras, em contraste com pistolas e rifles com que contavam os seus adversários. Aproveitando a ausência de tenente Lowe e seus homens, que tinham ido caçar focas, no meio da manhã lançou-se uma série de ataques-surpresa. Poucas horas depois foram mortos Brisbane, Dickson, Simon, e outros dois colonos: Ventura Passos e o alemão Antonio Vehingar. Todos tinham sido homens de confiança de Vernet até o ocupação britânica. Aproveitando-se de sua superioridade numérica, os rebeldes tomaram a casa do comandante, antiga casa de Vernet, edifício principal de Puerto Soledad. Os gaúchos impediram o hasteamento da bandeira britânica nos próximos cinco meses, levantado uma bandeira argentina improvisada em seu lugar. 

Enquanto isso os viajantes do Beagle haviam passado um ano longe de seus três amigos nativos, e estavam ansiosos para ver se os "índios civilizados" haviam começado a influenciar seus colegas de tribo. O que aconteceu foi o oposto disso, Jemmy havia reintegrado totalmente com sua cultura original, o que foi visto como uma derrota para a tripulação. Esta experiência viria a impactar muito Charles Darwin e influenciou todo o seu pensamento que veio depois.  Será que o naturalista estava no Jardim do Éden e não percebeu? É o que nos parece:
"A perfeita igualdade entre os indivíduos que compõem as tribos Fueguinas, deve por um longo tempo retardar sua civilização. Como vemos os animais, cujo instinto os obriga a viver em sociedade e obedecer a um chefe, são mais susceptíveis a evoluir, e assim é também com as raças humanas. Queira olhemos como causa ou conseqüência, o mais civilizado sempre têm os governos mais artificiais. (...) Em Tierra del Fuego, até que algum chefe surja com potencial suficiente para assegurar qualquer vantagem adquirida, tais como os animais domesticados, parece quase impossível que o estado político do país possa ser melhorado. Atualmente, até mesmo um pedaço de tecido dado a um é rasgado em pedaços e distribuído; e nenhum indivíduo torna-se mais rico do que o outro. Por outro lado, é difícil entender como um chefe pode surgir até que exista propriedade de algum tipo pelo qual ele pudesse manifestar a sua superioridade e aumentar seu poder." (Viagem do Beagle - Charles Darwin)
Durante este encontro em Wulaia, as cabanas de Jemmy, York e Fuegia estavam vazias, mas sem danos. Os jardins e as hortas tinham sido pisoteadas. Não havia uma alma e o lugar parecia abandonado ha meses. De repente, avistou-se três canoas no horizonte, Tommy Button vinha em uma, e na outra Jemmy, todos nus, com um pedaço de couro em suas costas, cabelos longos e lisos, o corpo magro e olhos irritados pelo fumo. Eles subiram no barco a noite e comeram com a tripulação.  Para surpresa de todos, a esposa de Jemmy, irmãos e cônjuges, empregavam algumas palavras em inglês quando falavam com eles:
"Uma canoa, com uma pequena bandeira hasteada, foi vista se aproximando, com um dos homens dentro dela lavando a pintura do seu rosto. Este homem era o pobre Jemmy, - agora parecendo um magro selvagem mal-ajambrado, com o cabelo desordenado e longo, e nu, exceto por um pouco de pano em volta de sua cintura. Nós não o reconhecemos até que ele se aproximou, porque ele ficou envergonhado de si mesmo, e virou as costas para o navio. Nós o tínhamos deixado gordo, parrudo, limpo e bem vestido; - Eu nunca vi uma mudança tão completa e atroz. Logo, no entanto, quando ele se vestiu, e a primeira agitação passou, as coisas voltaram à boa aparência. Ele jantou com capitão Fitz Roy, e comeu seu jantar com a educação de antigamente. Ele nos disse que ele tinha comido "demais" (ou seja, o suficiente), que não sentia frio, que seus parentes eram pessoas muito boas, e que ele não queria voltar para a Inglaterra. <...> Jemmy tinha perdido todos os seus bens. Ele nos disse que York Minster construíu uma grande canoa, e com sua esposa Fuegia, vários meses atrás tinha voltado para o seu próprio país, e como ato traiçoeiro de despedida; persuadiu Jemmy e sua mãe para irem com ele, e, em seguida, no caminho abandonou-os durante a noite, roubando todos os seus pertences. 
Jemmy foi dormir em terra, e na parte da manhã retornou, e permaneceu a bordo até que o navio entrasse em curso. <...> Ele voltou carregado com bens valiosos. Toda alma a bordo estava sinceramente arrependida de apertar as mãos com ele pela última vez. <...> Quando Jemmy chegou à praia, ele acendeu um sinal de fogo, e a fumaça se entrelaçou, desejando-nos um último e longo adeus, enquanto o navio manteve o seu rumo adentrando o mar aberto"
 Pintura do HMS Beagle partindo, com Jemmy acenando adeus.